
esde
que foi decretado o início da pandemia, em dezembro do ano passado, o
mundo ainda não sabia o que esperar. Não só em Wuhan, berço da doença,
mas em todo o país chinês, mais de 86 mil pessoas foram infectadas pela
doença até então desconhecida – e mais de 4,6 mil perderam a vida até as
primeiras semanas de novembro. O número parece estrondoso, mas não
chega perto das estatísticas brasileiras. Decretada em março, a doença
já contaminou seis milhões de pessoas e tirou do convívio de familiares e
amigos quase 170 mil. E as projeções não são nada animadoras: o Brasil
já pode estar passando pela segunda onda da doença.
O fenômeno vem sendo observado em países
da Europa, que endureceram mais as regras para tentar conter o vírus –
diferentemente do observado no nosso País. A França, que adotou medidas
rigorosas de isolamento no início, atinge agora a marca de dois milhões
de infectados, passando pela chamada segunda onda. Na Itália, um dos
países mais afetados nos primeiros meses de 2020, alcança a triste marca
de maior número de mortes em sete meses, elevando o total de mortos
para cerca de 46,5 mil e o de casos para mais de 1,2 milhão (índice
registrado em 18 de novembro).

“O que vemos na Europa é que foi
considerada como vencida essa etapa de epidemia. Os países liberaram as
atividades, o verão europeu foi muito bem aproveitado pela população,
mas sem os devidos cuidados. Hoje, eles estão pagando o preço. Muitos
países estão adotando o lockdown novamente e o número de casos
tem subido de uma forma bem impressionante, levando em risco até mesmo a
capacidade do serviço de saúde de atender a população afetada”, alerta o
médico infectologista Hemerson Luz.
Na opinião dele, o Brasil ainda nem
superou a primeira onda da Covid-19. “A primeira onda ainda não foi
sobrepujada, ainda estamos vivendo ela’. Temos uma curva que está
descendente, mas o vírus continua sendo transmitido entre as pessoas.
Essa curva descendente vem acompanhada de picos, de momentos com grande
número de casos, porém sem o número de óbitos aumentando”, explica. “E a
gente observa características epidemiológicas interessantes, como a
população mais jovem sendo afetada atualmente e o preparo maior do
sistema de saúde em atender as pessoas com Covid-19”, avalia.
Para o médico infectologista, o melhor
termômetro para saber se há aumento nos casos ou não é pela taxa de
ocupação nas UTIs. E sobre a segunda onda no Brasil, ele enfatiza. “Não
acredito que haverá segunda onda no Brasil, pois ainda estamos na
primeira. Isso tudo vai depender das características epidemiológicas da
doença, além de características comportamentais. Se a população não
respeitar as regras de distanciamento, máscara e higienização das mãos,
certamente poderá haver um boom de casos no Brasil e aí sim poderemos considerar uma segunda onda ocorrendo.”

O epidemiologista da Universidade de
Brasília (UnB) Walter Ramalho compartilha de opinião semelhante. Para
ele, a segunda onda é uma realidade na Europa, com a abertura recente do
comércio e da liberação das atividades e do turismo. “Em alguns países,
foi um número maior do que o que foi registrado no começo da pandemia”,
afirma.
Mas, para ele, o Brasil ainda passa por
uma “onda inacabada” da doença. “O que vivemos hoje é o contágio de
grupos sociais que se protegeram, que estavam reclusos e que puderam
fazer lockdown. E hoje essas pessoas estão achando que não existe mais risco”, lamenta.
“Tivemos uma reclusão de pessoas que se
convenceram da pandemia – e esse convencimento é uma coisa importante.
Tivemos, no primeiro momento, um grande impacto de pessoas que não
puderam ficar em casa, das que precisaram sair ou daquelas que
acreditaram que a Covid-19 era só uma ‘gripezinha’”, ironiza o
epidemiologista da UnB.
Ramalho comenta que essas pessoas foram
de alto impacto para a doença e que ela permaneceu nesses grupos sociais
por um longo tempo, até que houvesse o esgotamento no contágio. “Com a
diminuição da veiculação de reportagens sobre o assunto, as pessoas que
estavam em casa passaram a acreditar que não havia mais problema e
passaram a ir para as ruas, para uma vida quase normal. E essas pessoas
estão sendo agora as vítimas da Covid-19”, acrescenta.
Quando o assunto é liderança, Walter
Ramalho endurece. “As pessoas precisam ser convencidas de que existe um
problema. Por ser um problema na ordem da saúde, a gente precisa que o
ministro da Saúde fale com a população – e eu não ouço o ministro
falando nada. Não vejo outra autoridade na saúde falando sobre a
necessidade e os cuidados. Estamos numa sociedade sem liderança oficial,
o que temos hoje é a imprensa notificando e sensibilizando as pessoas
mostrando o que existe na realidade”, critica.

Onda gigante
Já para o pesquisador e responsável pelo
Laboratório de Inteligência em Saúde (LIS) da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo (USP), Domingos Alves, o Brasil está, sim,
passando por uma segunda onda da Covid-19.
“Se levarmos em consideração o atual
cenário, nós nunca saímos da primeira onda. Tivemos declinação de casos e
de óbitos que vinham sendo observados. Mas nós estamos numa segunda
onda à revelia do conceito mais claro do que é esse fenômeno. Já me
chamaram a atenção de que a definição de segunda onda não é clara, que
eu não poderia estar afirmando isso. E eu estou afirmando que nós
estamos numa segunda onda exatamente pelo negacionismo em que nós
vivemos no nosso País”, dispara.
Ele garante que a politização da doença
foi um dos determinantes para que o País chegasse a esse cenário. “Essa
atribuição não é leviana, ela já é um consenso internacional. A maneira
dessas lideranças de encarar a epidemia trouxe muitas das consequências
observadas no Brasil. Boa parte do que se observou em termos de óbitos
aqui teve muito da participação desse negacionismo, dessa politização da
doença, inclusive nos embates entre os governos estaduais e o federal”,
lembra.
Domingos Alves é categórico ao afirmar
que só há uma forma de acabar de vez com a pandemia. “Antes de mais
nada, é importante frisar que todas as medidas adotadas para reduzir a
taxa de contato são necessárias. E elas nunca foram suficientes. A única
medida que vai ser suficiente para conter o avanço da pandemia vai ser a
vacinação, e a vacinação em massa.”
Casos subnotificados e queda na testagem
da população, na opinião do pesquisador, podem ter causado uma falsa
impressão de que a pandemia acabou. “É muito grave nós não tomarmos
providências agora, com esse crescimento de casos, e esperar que essa
‘marola’ vire uma onda gigante. E aí pode acontecer de, daqui a uma ou
duas semanas, os gestores tomarem providências e os casos não crescerem
de maneira suficiente no Brasil. E aí vão me chamar e dizer: ‘olha,
professor, não entramos numa segunda onda.’ Não entramos porque tomamos
atitudes, e aí eu vou estar errado. E vou ter um prazer muito grande de
dizer que errei”, garante.

Economia
Além do número de casos, o Brasil também
bateu outros recordes: o de número de desempregados. Dados do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgados ainda em
outubro, mostraram que o desemprego bateu recordes no mês anterior.
Foram cerca de 13,5 milhões de pessoas sem trabalho na pandemia
até setembro, 3,4 milhões a mais do que o registrado em maio.
Para o economista e presidente do
Conselho Regional de Economia do Distrito Federal (Corecon-DF), César
Bergo, a possível segunda onda da Covid-19 pode gerar impactos no setor
econômico.
“Mas espera-se que sejam menores em
razão da experiência e do conhecimento que foram obtidos por ocasião do
início da pandemia. Muita coisa mudou e foram implementados inúmeros
procedimentos que vão contribuir para minimizar os efeitos”, diz.
Por outro lado, segundo ele, a
continuidade da doença gera “certo desânimo”. “Nós teremos que conviver
com isso por um longo tempo. Mas o surgimento de novas formas de
combater a Covid-19, quando implantadas, vão trazer a esperança de volta
e consequentemente voltaremos para uma nova normalidade”, acredita o
economista.
O professor da Fundação Getúlio Vargas
(FGV) Walter Cintra lembra que uma das possíveis causas para esse
cenário é o relaxamento das medidas de isolamento social. “A volta das
pessoas se reunindo e a volta das atividades sociais aumentam o contágio
entre as pessoas”, avisa.
Entre o embate da passagem do Brasil
pela primeira ou segunda onda, Cintra dá o recado. “Na verdade, isso
pouco importa. O que importa é que precisa haver novamente um reforço
das medidas de contenção, de isolamento social, de uso de máscara, de
higienização das mãos.”
